virtualmente excluída

Um amiguinho muito inteligente chamado Diogo adorou a história da Chapeuzinho Amarelo escrita por Chico Buarque. A protagonista, uma menina que sentia muito medo, aprendeu a driblar esse sentimento invertendo palavras e, consequentemente, seus significados. Lobo virou bolo, tubarão baturão, e assim por diante. Certa manhã, despertei tentando converter a morte em algo banal. Mas virou temor. Dor, então, monossílaba impossível de inverter. Passei a filosofar sobre minha vida. Descobri que minha rara presença no facebook me transformou em uma mulher ilhada, com menos possibilidades de encontros com amigos e outros afins. Daí pintou o fantasma da solidão, ou lidãoso, lisodão, como queira. Lembrei-me de um amigo que achou curioso o fato de uma jornalista ser avessa aos meios de comunicação virtuais (não é o meu caso, já que estou bancária). Acredito que a comunicação seja uma das ferramentas para um mundo melhor. Desde que clara, fidedigna e acessível a todos. Obviamente, o caminho é a internet, embora essa predominância exagerada também me cause temor. Pelo menos no momento, as redes sociais não promovem uma comunicação eficaz, já que todos têm algo a dizer, mas pouco a acrescentar uns aos outros na vida prática. Muita informação sem triagem congestiona os sentidos, engana a memória. Sou fã de muitos blogs úteis, interessantes ou instigantes. Pena que os e-mails desapareceram, perdendo espaço para mensagens truncadas via redes sociais. Até as conversas telefônicas ficaram obsoletas, os bate-papos nos bares intercalados entre uma postagem e outra. Saíram ganhando os casais de namorados que ficavam horas em silêncio, um ao lado do outro, com cara de paisagem: virtualmente é mais fácil trocar ideias...

“Andei pisando pelas ruas do passado”, relendo reportagens que escrevi cinco, seis, dez anos atrás. Descobri muitos textos pobres literariamente e gramaticalmente, porém, com conteúdos de valor. Para mim, desde muito cedo, escrever sempre foi um desafio à solidão. Na medida em que as letras marcavam o papel eu ficava mais forte. Mesmo sem o reconhecimento dos leitores. A mim me bastava a escrita (também arrisquei alguns desenhos). Ainda guardo a máquina de escrever Olivetti portátil que ganhei de uns bons amigos. Imagino que um dia ela sairá do armário para enfeitar um cômodo da casa revelando, ao mesmo tempo, um trecho da minha história. A passagem para o teclado do computador não foi nem um pouco traumática (muitos diziam perder a inspiração na falta do papel). Arrisquei até escrever um blog vira-lata por cinco anos. Ao reler muitas postagens cheguei a sentir vergonha pela ingenuidade das colocações ou dos erros de sintaxe (mas mantive tudo lá). Apesar do diploma de jornalista, a falta de contato com uma grande redação ou um mestre experiente me fez falta, creio que esse contato seja fundamental para a excelência profissional. Somente habilidade inata não basta. Sempre senti muita afinidade com a proposta irreverente de blog, união do discurso e da imagem com liberdade ao autor para publicar de acordo com a própria ética. Mas nos dois últimos anos vi meu entusiasmo arrefecer a ponto de perder a inspiração para fotografar e escrever. Com a câmera e as asas da imaginação quebradas saí de cena.

Inspiração:


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis, 14-2-1933.

Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas;
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
Vadeamos.

Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
Este célebre sentimento,
E o amor faltou: chovia,
Ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.

O medo, com sua capa,
Nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
Meu companheiro moreno.
De nos, de vós, e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
Vem ó terror das estradas,
Susto na noite, receio
De águas poluídas.
Muletas Do homem só.
Ajudai-nos, lentos poderes do Láudano.
Até a canção medrosa se parte,
Se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
Duros tijolos de medo,
Medrosos caules, repuxos,
Ruas só de medo, e calma.
E com asas de prudência
Com resplendores covardes,
Atingiremos o cimo
De nossa cauta subida.

O medo com sua física,
Tanto produz: carcereiros,
Edifícios, escritores,
Este poema,
Outras vidas.
Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
Recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
Eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
Dançando o baile do medo.

O Medo (Carlos Drummond de Andrade)

Fiz ranger as folhas de jornal
Abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo De cada fronteira distante
Subiu um cheiro de pólvora
Perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
Nada de novo há
No rugir das tempestades
Não estamos alegres,
É certo,
Mas também por que razão
Haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
É agitado.
As ameaças
E as guerras
Havemos de atravessá-las.
Rompê-las ao meio,
Cortando-as
Como uma quilha corta
As ondas.

E então, que quereis? (Wladimir Maiakóvski)


Aí, Chapeuzinho encheu e disse:
"Pára assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!"
E o lobo parado assim, do jeito que o lobo estava, já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo, tremendo que nem pudim, com medo de Chapeuzim.
Com medo de ser comido, com vela e tudo, inteirim.
Chapeuzinho não comeu aquele bolo de lobo,
porque sempre preferiu de chocolate."
 

Comentários

Laise Diogo disse…
"A menina com medo/ faz um furo no escuro com a ponta do dedo./ Cai um pingo de luz./ Amanhece. (Flora Figueiredo)."
Levando a sério-brincadeira o que Chapeuzinho Amarelo nos diz, ainda aprenderemos muito!
Continuemos, minha querida!
bisteca disse…
Valeu, Laise, grande companheira: MEDOMEDOMEDOME-DOME-DOMEDOMEDOMEDOMEDO... Obrigada por me inspirar, também!

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