irreflexões

Quando alguém mais próximo morre de forma brutal, como aconteceu com o açougueiro Major, sempre reflito sobre a vulnerabilidade humana. Imagino gigantes pisando sobre a humanidade como fazemos com as formigas, na maioria das vezes, sem querer (pelo menos os adultos). E como seria a vida após a morte, se é que há alguma? A crença generalizada é: morreu, acabou. Só que enquanto uns creem na morte no sentido literal, outros acreditam que o fim tem a ver somente com a dimensão na qual vivemos. Assim, passamos a habitar outros mundos e continuamos a evolução da alma. Já pensou se acabamos, mesmo? Provavelmente, tal pensamento cause desconforto, afinal, ficaríamos limitados à real insignificância da carne (sem fazer analogia ou piada fora de hora). Mas o homem que pensa ousou buscar novos significados para a existência humana, transformando nossa rápida passagem pela terra numa odisseia sem fim.

A personagem principal do livro Uma vida interrompida diz que o céu é de acordo com a imaginação de cada um. Seguindo este raciocínio, talvez, também o inferno. Então, me consolaria pensar que iria para um céu com diamantes onde assistiria ao show dos Beatles quando quisesse. Não de um Paul MacCartney solitário e sem graça, mas dos quatro juntos, irradiando charme, ousadia e irreverência. Ou, então, num campo cheio de morangos sem agrotóxicos, mas sempre com um som legal rolando no palco: Santana, Gil, Manacá. Já pensou, sermos responsáveis por nossas histórias aqui na terra e, mesmo depois de mortos, continuarmos com tamanha responsabilidade? Almas sem descanso, sem parada, fadadas ao aprendizado eterno. É muita crueldade. Ou não. Talvez esteja, como o pássaro negro, apenas esperando esse momento para decolar...


MINHA HISTÓRIA
Maria Bueno, cabeleireira aposentada, conta causos do Hotel Royal, da Polenghi e dos salões de beleza da sua vida.



Mulher de grande sensibilidade


Maria da Conceição Bueno nasceu em 07.09.37, no Córrego do Gordura, zona rural de Monte Belo, a primogênita de Sebastião Astolfo Bueno e Alvarina Maria de Jesus Bueno. Teve mais cinco irmãos: Ana, Inês, Silvia, Toninha e Luiz Antônio. Religiosa, desde jovem, Maria ajudou a fundar, em Guaxupé, o Movimento de Santa Filomena e o “terço dos homens”, ambos na igreja de Santo Antônio. Sempre foi muito dedicada à família. Durante sua história, ao falar dos pais, em vários momentos, ficou com os olhos marejados, atribuindo sua emoção a uma grande sensibilidade: “Deus foi muito generoso comigo, nas horas boas e nas difíceis.”

“Papai era sitiante e, mamãe, dona de casa prendada, como a maioria das mulheres daquela época. Era ela que costurava nossas roupas. Lembro-me das bonecas de celulose e vestidos coloridos que ganhávamos de papai no Natal.
Nossa família era muito unida e alegre. Nos finais de semana, recebíamos nossos tios em casa ou íamos às casas deles. Brincava muito com meus primos, de cantigas de roda e de bater corda. A gente ia a cavalo de um sítio a outro, na garupa dos nossos pais. Quando era mais perto, fazíamos caminhadas. De primeiro, a vida era mais saudável.
Onde morávamos não tinha escola. Preocupado com nossa educação, papai construiu um cômodo ao lado de casa para ser sala de aula. Papai trabalhou numa eleição municipal com a promessa de conseguir uma professora, caso seu candidato fosse eleito. E conseguiu. Ele buscava a professora em Monte Belo, a cavalo. Ela se hospedava na nossa casa durante a semana. Todas as outras crianças da região frequentavam essa escola.
A primeira viagem distante que fiz com minha família foi uma excursão para Aparecida do Norte. Pegamos a Rede Ferroviária, de Jureia até Cruzeiro. Todos os integrantes da romaria viajaram no mesmo vagão do trem. Finalizamos o percurso de ônibus.
Nossa professora nos deu aulas de Catecismo para fazermos a 1ª Comunhão, que aconteceu na igreja de Monte Belo. A partir daí, comecei a participar das Filhas de Maria e nunca mais perdi os laços religiosos.
Entrei no grupo escolar quando nos mudamos para um sítio mais próximo da cidade. Já era grande, devia ter entre 14 e 15 anos. Tive duas professoras, dona Célia e dona Zuleide, ambas muito dedicadas. Ficaram marcadas na minha memória as reuniões do grupo de leitura da nossa classe, todos os alunos muito participativos. Para nós, cada encontro era uma festinha.
Recebi o diploma do primário e comecei a trabalhar, por volta dos dezesseis anos. Fazia serviços domésticos nas casas de família, como cozinhar, lavar e passar roupas. Vivíamos num lugar pequenininho, não havia o que fazer. Em muitos momentos, ficamos sem trabalho, somente papai sustentava a família. Por esta razão, ele decidiu procurar um lugar maior para viver. Em 1955, chegamos a Guaxupé.

Minhas irmãs estudavam de manhã. À tarde, todas nós ganhávamos uns trocadinhos catando café no armazém do Frota. Lá, trabalhava gente de todas as idades, em três períodos. Geralmente, íamos na parte da tarde e da noite. Papai trabalhava como servente de pedreiro, fazia o serviço que tivesse na área de construção, menos de encanador e eletricista.
Depois, trabalhei em casa de família, como cozinheira do Sálvio Calicchio. Em seguida, do Hotel Royal, situado na rua do balaústre. Era um local movimentadíssimo, por isto tinha duas ajudantes de cozinha. Viajantes e caminhoneiros comiam lá. Um encarregado da ferroviária buscava marmitas para os pagadores da Mogiana.
Na comemoração dos 25 anos da Festa das Orquídeas, não tinha onde por gente no hotel: por ser pequeno, ficou abarrotado. Fizeram uma festa maravilhosa, sabia os acontecimentos através dos comentários dos hóspedes. Não tinha tempo de sair pra nada. Preparava uma quantidade grande de comida, e com variedades, orientada por Dona Julieta e seo João Rocha, proprietários do hotel, e por Tarcísio, que fazia os serviços de garçom.

Funcionária da Polenghi
Em 1961, uma vizinha e amiga, Vilma, me arrumou um trabalho na Polenghi, como empacotadora de produtos: manteiga, ricota, mozarela, entre outros. Os donos eram italianos. Chapilé era o chefe da seção de lactose, produzida com o soro do leite. Adriano fabricava os laticínios, sem sua autorização nada podia ser mudado.
Havia em torno de sessenta funcionários na fábrica. No meu setor, dez mulheres, todas muito unidas. Uma cobria a falta da outra.
O rio Guaxupé passava embaixo do prédio da Polenghi. No início dos anos de 70, aconteceu uma enchente horrorosa, numa ocasião de muita chuva. Estávamos trabalhando quando olhamos pra baixo e vimos aquele mundo de água; ficamos assustadas, foi um Deus nos acuda.
Após doze anos, saí da Polenghi para fazer um curso de cabeleireira, em São Paulo. Minhas irmãs, Silvia e Toninha, trabalharam no salão de beleza da Olga Podestá e decidiram abrir negócio próprio. Silvia era manicure e, Toninha, cortava e penteava. Fui fazer o curso da Niasi para aprender a mexer com tintura e permanente. Durante um ano, fiquei hospedada na casa da família do Anísio, noivo da Toninha. De manhã, ajudava nos serviços domésticos e, à tarde, ia pra escola. Quando recebi o diploma, voltei.
Primeiramente, minhas irmãs alugaram o antigo ponto da dona Olga. Com meu retorno, passamos para o prédio da dona Geni, na rua “do buracão”. As clientes da Toninha começaram a fazer permanentes e pintar o cabelo.
Fiz muito permanente em homens, que naquela época usavam cabelos compridos, como um sitiante muito simples que atendi certa vez. Quando terminei, ele se olhou no espelho e ficou satisfeito: enterrou o chapéu na cabeça e foi embora, feliz da vida. As mulheres no salão perguntaram pra mim se eu não ficava chateada por ele colocar o chapéu depois de todo o meu trabalho. Achei engraçado.


Na escola da vida
Depois, nosso salão mudou para os fundos da casa dos nossos pais, na Rua Pereira do Nascimento, onde ficamos por dez anos. Tive uma clientela boa ali. Arrumei muita noiva e debutante. Muitas vezes, ia nas casas das clientes. Algumas noivas faziam questão que eu as acompanhasse até a porta da igreja. Cheguei a atender sete noivas num mesmo sábado. Foi uma época bastante saudável, de sucesso no trabalho.
A profissão me fez ter contato com muitas pessoas diferentes. Este convívio me ensinou muito, o proveito humano é grande. Já aconteceu de clientes, professoras, me perguntarem sobre minha formação escolar. Diziam que eu sabia conversar e elevar o astral delas. Sempre respondia que estudei na escola da vida, mas acredito que o diploma valoriza a pessoa.
Cortei o cabelo de muita criança, até mesmo daquelas teimosas que não deixavam o cabeleireiro trabalhar. Eu conversava com ela primeiro: se não quisesse, não cortava. Ficavam quietinhas comigo, tinha mãe que se espantava. A convivência faz a gente respeitar cada idade e o jeito de ser de cada um. Nunca desrespeitei a vontade de ninguém. Só teve uma vez que fiquei chateada. Errei com uma amiga, Laura Krauss, ao cortar o cabelo dela muito curto.
Também realizei muito trabalho voluntário no carnaval, com minhas irmãs e sobrinhas, fazendo o cabelo e a maquiagem, e ajustando as fantasias no corpo dos integrantes das escolas de samba. Lembro-me do ano em que arrumei uma ala de mulheres fantasiadas de japonesas, dos Bicancas. Nossa casa ficou cheia de brocado vermelho e dourado.
Noutra ocasião, ao fazer a maquiagem de um passista da Ala Jovem, fantasiado de pierrô, uma das maquiadoras deixou cair brocado nos olhos dele. Ficamos preocupadas e procuramos ajudá-lo. Depois, saiu dançando numa boa.
Fiz esse trabalho muitas vezes, sem cobrar nada. Achava gratificante ver o resultado na avenida e saber que minha contribuição foi válida para a cidade.

De mãos dadas com Deus
Nunca fui de frequentar bailes e festas. Trabalhava até muito tarde e preferia descansar. Dediquei minha vida à família e ao trabalho. Não gostava de deixar meus pais sozinhos. Nunca reclamei de nada, sou uma pessoa realizada e feliz. Não ter tido uma vida social não me fez falta.
Agradeço demais o carinho e atenção que muitos clientes e vizinhos dedicaram aos meus pais, na época em que estavam velhinhos. Tenho lembranças muito boas. Mudamos de casa várias vezes e o salão foi junto. Certa época, chegou a funcionar nos fundos da casa da Inês, que trabalhou muito tempo como manicure. Ana, minhas sobrinhas Luzânia e Fabíola, e Leninha, minha cunhada, também.
Aposentei por tempo de contribuição há uns treze anos, mas continuei trabalhando. Na casa em que moro atualmente, ainda tenho um salão montado. Mas já não dou conta de atender muita gente. Estou me preparando pra parar de vez. Pretendo fazer coisas diferentes, como pintar e bordar. Já faço alguma coisa sozinha, mas quero me aperfeiçoar.
Meus pais faleceram no início dos anos de 2000, mas não fiquei só, minha família sempre esteve de mãos dadas comigo. Também tenho bons amigos. É uma bênção de Deus.
De uns quatro anos pra cá, passei a tirar um dia da semana pra mim. Nas tardes de terça, participo do terço da Divina Misericórdia, na igreja de Santo Antônio. Agora, iniciamos um terço de homens, às 18h. Convidei dois colegas, ambos chamados Sebastião, e conseguimos reunir vários homens. Também participam mulheres.
Fundei o Movimento de Santa Filomena, com autorização do vigário da paróquia. Gosto muito de flores e da natureza. Chamou minha atenção a imagem dessa santa, rodeada de flores coloridas aos seus pés. Fiquei encantada ao conhecer a história dela. Mas tenho devoção por Jesus, a vida sem Deus não é nada.”

Atualmente, Maria tem doze sobrinhos e quatro sobrinhos-netos. Recentemente, perdeu seu irmão caçula, um grande abalo à sua sensibilidade de irmã mais velha. Ela é como uma segunda mãe para todos.

Fotos:
1) Ana, Inês, Toninha, Silvia e Maria; sentados, Luiz Antônio e os pais, Sebastião e Alvarina.
2) Maria e a mãe no salão da Rua 13 de Maio, em 2000.
3) O cunhado, Roberto (marido da Silvia), seo Sebastião e Maria.
4) Maria, à esquerda, com colegas da fábrica, nos fundos da Polenghi.
5) No “terço dos homens” que acontece às terças, 18h, na Igreja de Santo Antônio.


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