maneiras

Mais fácil escrever a história dos outros do que a minha. É mais fácil falar da vida alheia, não? Bem, de qualquer forma, fazer entrevistas para a coluna Minha História, publicada semanalmente, aqui e no Correio, nada tem a ver com fofoca. É jornalismo, registro histórico, cultural, ou outro adjetivo que me escapa no momento. Mas o fato é que minha inspiração para a escrita, hoje, está à deriva. Não encontro motivos interessantes para desgastar meus olhos ou de qualquer leitor. Então, fiquemos com a história do nosso querido amigo Itamar. Digo nosso, sem querer parafrasear certas enfermeiras delicadas demais ou, talvez, esticar inadvertidamente o leque de amigos do músico. Ele que embala as noites de conhecidos e desconhecidos com sua voz forte e dedos calejados pelas cordas do violão. Itamar Cassiano, Maria dos Reis e Carlão foram um dos negros de Guaxupé a darem depoimentos no documentário produzido pelos alunos da E.E. Dr. Benedito Leite Ribeiro, dentro do projeto anual Escola Viva, idealizado por Tê Machado, e conduzido por diversas educadoras, como Linda Escudeiro, Maria Alice Baraldi, Sandra Araújo, entre outros, apresentado no Teatro Municipal, na última quarta.




Com a palavra, mestre Itamar

Itamar Cassiano nasceu em São Caetano do Sul, dia 02.08.56, filho de José Cassiano Filho e Maria Aparecida Cassiano. Eram nove irmãos de sangue, Sérgio, Selma, Isaias, Gerson, Itamar, Gilberto, José Mário, Cione e Flávio, e outros quatro, de criação, Aparecida, César, Mirna e Edmo. Desde pequeno, Itamar visitava os avós maternos, João Matheus e Benedita, em Guaxupé. Assim começou seu encantamento pela cidade em que deseja viver para sempre. Nesta semana de comemoração da Consciência Negra, Itamar ganhou maior visibilidade, como um dos entrevistados no documentário exibido no Teatro Municipal, na última quarta: Fala, mestre!

“Quando nasci, papai trabalhava na área de finanças da Prefeitura de São Paulo. Como funcionário público, não ganhava o suficiente para sustentar a família, por este motivo, trabalhava, também, à noite e nos finais de semana, como pedreiro. Mamãe sempre foi do lar. Somos uma família bastante unida.
Perto da casa onde nasci, pelas mãos da parteira Iolanda, havia várias lagoas, onde pescava e nadava com a molecada, escondido das mães. Era muito arteiro. Estudei, do grupo ao ginasial, numa escola perto de casa. Uma vez, coloquei um sapo que peguei na lagoa dentro da bolsa da minha professora de português, dona Tânia. Esta brincadeira custou quinze dias de suspensão. Apanhei até umas horas, mas sabe como é surra de mãe, que não bate, alisa.
Noutra feita, um vizinho português rasgou a bola de capotão do nosso time de futebol. Aproveitamos que ele deixava a janela aberta para a vizinhança assistir a TV - naquela época, poucos tinham um aparelho em casa - e jogamos uma caixa de marimbondos dentro da casa dele. Como a rua era escura e a casa, iluminada, os marimbondos ficaram atraídos pela luz, sendo preciso chamar os bombeiros. Morreu o gato e o canário; todos da família foram parar no hospital. Não tínhamos noção do estrago que iríamos causar. Hoje, não faria isso.
Por esta arte, o juizado de menores proibiu a gente de brincar na rua após as 18h. Se pegasse um de nós, era bronca nos pais e a cinta comia solta. As autoridades perseguiram os moleques durante três anos, mas não conseguiram pegar um sequer.
Na minha infância, visitávamos sempre meus avós, João Matheus e Benedita, em Guaxupé. Lembro-me dos pés de jabuticaba e da mangueira no quintal. Chupar fruta no pé, para os meninos de São Paulo, era novidade, pois morávamos num lugar todo asfaltado e cimentado.
Meu avô plantou a mangueira sob a qual os chapas ficam, na Praça 1º de Junho. Não tenho muitas lembranças, mas quando eu era bem pequeno, eles moravam numa casinha de lata, da Cia. Mogiana, situada onde, atualmente, é essa praça. Vovô era guarda-porteira da ferrovia. Trabalhou até o último apito do trem. Teve cinco filhas, entre elas, mainha.

O primeiro violão
Aos quinze anos, comecei a tocar violão. Comprei meu primeiro instrumento juntando o dinheiro que ganhava fazendo uns bicos de entregador num mercadinho perto de casa. Aprendi algumas notas com meu irmão mais velho, Sérgio, e fui tocando em frente. Fiz minha primeira composição nessa época. Participava de uma comunidade de jovens da Igreja de Nossa Senhora das Graças, e pediram para eu fazer uma música religiosa. Acho que até hoje em dia eles cantam essa música nas missas.
Parei de estudar depois do ginasial. Fiz um curso de torneiro mecânico no SENAI. Trabalhei como maquinista, na Bombril, durante quatro anos. Saí em 75, para prestar o serviço militar. Mais maduro, fui um soldado exemplar.
Junto com outros quatro atiradores formamos um grupo musical chamado Boca da Noite. Nos apresentávamos em diversas casas noturnas de Santo André, São Bernardo e na grande São Paulo. Eu tocava violão. Sempre, samba e MPB. O Boca durou doze anos, desmanchou porque a turma foi se casando.
Depois do tiro, tocava de noite e, de dia, era funcionário concursado da Prefeitura de São Caetano, trabalhava como encarregado de coordenadoria. Fiquei desta forma uns onze anos. Quando quis ser transferido de setor, não consegui, então, pedi demissão. Passei a me dedicar somente à música.
Com o fim do Boca, parti pra carreira solo. Toquei em muitas casas noturnas das redondezas. Havia muitos locais que ofereciam música ao vivo. Só não trabalhava nas segundas, porque fechavam. De dia, por oito anos, dei aulas de vilão. Cheguei a ter 24 alunos, que me chamavam de mestre Itamar. Parei porque não tinha a carteira definitiva de músico, que nunca me interessei em tirar.
Por volta de 88, conheci alguns integrantes do famoso Demônios da Garoa, que estava desativado naquela época. Formamos um grupo batizado de Adoniran, em homenagem ao sambista paulistano. Participamos do cinquentenário de flauta do mestre Altamiro Carrilho, por toda a grande São Paulo. Um ano depois, o conjunto retomou a formação original e meu lugar de violonista foi ocupado pelo filho de um ex-integrante. Os Demônios da Garoa têm a tradição de se manter em família.
Voltei a me apresentar sozinho. Em São Paulo, toquei no Café Society e no Piu-piu, no Bixiga; no Bar Brahma, no centro, e no Vou Vivendo, em Pinheiros.
De 83 a 96, vivi com Virgínia, que conheci numa casa noturna de São Caetano, chamada Amarelo 20. Foi uma experiência muito boa enquanto durou, nos separamos em comum acordo. Quando nos conhecemos, ela tinha três filhos que ajudei a criar: Nilton David, Wilson Renato e Thaís Mariana.
Guaxupé, um sonho antigo
Painho se aposentou no final dos anos de 80 e se mudou com mainha pra Guaxupé. Em 97, estava vivendo sozinho em casa. Meu irmão, Gilberto, tocava uma alfaiataria nos fundos. Como meu outro irmão, José Mário, que morava em Guaxupé, precisou voltar com a família para São Caetano, por motivos profissionais, cedi nossa casa a ele e vim para cá.
Amo esta terra de paixão, me identifiquei com o povo daqui e não pretendo sair. Sempre preferi a calma do interior. Não gostava da agitação de São Paulo. Todo paulista que tem a oportunidade de conhecer Minas, quer morar aqui. O povo mineiro é muito hospitaleiro.
Com quinze dias na cidade, comecei a tocar no Bar do Valdir, na Praça dos Estudantes. Não conhecia ninguém. No bar, fiz amizade com Cuíca, Carlão, Wilson Caetano e, aos poucos, fui conhecendo a galera da música.
Nos finais de semana, durante o dia, nos reuníamos numa roda de samba, no bar do Silvio Santos, no Catetos. Nosso objetivo era fazer um aperitivo e encontrar outros músicos. Não era trabalho, mas sim lazer.
Em 2000, sofri um acidente na Dona Floriana. Um carro me atropelou quando atravessava a avenida. Voltava da casa de um primo de mainha, Ewerton Daniel de Orlando, com quem me encontrei para combinar minha participação na bateria da Unidos das Vilas, tocando surdo. Infelizmente, não aconteceu, pois fiquei seis meses sem andar e sem trabalhar. Quebrei a perna esquerda em três lugares, até hoje tenho sequelas. Ando com o auxílio de uma bengala e não consigo carregar peso.
Mas continuo tocando na noite. Com o fechamento do Valdir, no ano passado, fui convidado para tocar no Flash Beer. Em seguida, passei a integrar as rodas de samba que acontecem aos sábados, a partir das 22h, no Marcenaria, a convite do Gusto Zerbini. No início das noites de sexta e sábado, no Galo de Ouro, toco com Carlão e Luís da Timba, mais os amigos que sempre aparecem para aumentar a roda.
Na virada de 2009, me levaram para tocar em uma festa particular, às margens do Rio Piracicaba. Lá conheci o sheik Wahib Binzagr, da Arábia Saudita, que gostou demais do meu trabalho e me presenteou com um violão autografado por ele e por sua esposa, Dinah. É o instrumento que tenho como companheiro, atualmente. Na virada de 2011, voltarei novamente à Piracicaba, mas infelizmente, o sheik não estará presente. Ainda em 2009, sofreu um infarto fulminante.
Vira e mexe, Caetano e Rodrigo me convidam para algum programa da Rádio Comunitária, como aconteceu no centenário da morte do Adoniran Barbosa. Na oportunidade, cantei várias composições deste mestre do samba. Sou feliz, assim.”

Itamar está satisfeito com a vida que leva, na cidade que escolheu, e onde fez muitos amigos. Faz parte dos seus projetos gravar um CD. Ao todo, compôs cerca de 30 músicas. Destas, oito já estão prontas para estúdio. Segundo ele, todo músico tem vontade de se apresentar pelo Brasil inteiro. Mas afirma que no final do show, volta pra trás. Não quer ficar longe de Guaxupé nunca mais.

Fotos:
1) Itamar com o sobrinho-neto Wesley, mainha e painho;
2) Virgínia e Itamar no aniversário de 15 anos da sobrinha Nuria, em 88.
3) Em Piracicaba, com o sheik Wahib e sua esposa, Dinah.
4) Em 2007, comemorando seu aniversário entre amigos, no Bar do Valdir.
5) Este ano, no aniversário de Guaranésia, nos bastidores dos Demônios da Garoa, Itamar à direita dos antigos companheiros, Ventura Ramires e Roberto Canhoto.


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