fernando "o do bacalhau"
Há sempre um depois
Fernando Jeronymo nasceu em 27.07.26, em São Paulo, segundo filho do casal de portugueses Ana Maria Barreira e Augusto do Nascimento Jeronymo. Chegou em Guaxupé adolescente e, poucos anos depois, partiu novamente à sua terra natal, encantado com as possibilidades da cidade grande. Após muitas experiências, há cerca de trinta anos, ao voltar para o interior, tornou-se conhecido por Fernando “o do bacalhau”, uma alusão às suas origens. Criado na doutrina espírita, ao falar sobre si mesmo, afirma: tem sempre um depois na minha vida.
“O sonho dourado dos italianos, árabes e portugueses era vir para o Brasil. Quando solteiros, meus pais moravam na região de Trás os Montes. Ambos emigraram de Portugal, em 1910, mas só se conheceram em São Paulo.
Passei minha infância na Vila Mariana. A rua onze de junho era de terra e havia dois córregos perto de casa. As brincadeiras eram na rua: jogar bola, brincar de peão e empinar papagaio. Tinha um jogo chamado castelo, semelhante ao baseball americano, que jogávamos com as bolas de tênis que escapavam do Clube Sírio e caiam no mato.
Lembro-me do bonde elétrico e que havia poucos carros. A avenida onze de junho tinha 1.500 metros e apenas um telefone, o do armazém de secos e molhados. Às vezes, papai ficava mais de um mês fora, viajando pelo Brasil. Deixava recados para minha mãe com o dono da mercearia.
Aos doze anos, eu buscava, na Rua 25 de Março, o dinheiro que papai mandava para as despesas do mês: 500 mil réis. Recebíamos através de um de seus fornecedores, que ficava na Rua 25 de Março. Mamãe, temendo que eu fosse roubado, punha um alfinete para fechar o bolso interno do meu paletozinho, onde eu guardava o dinheiro.
Meu irmão Jayme, dois anos mais velho, e eu estudamos no Grupo Escolar Pedro Voss, na Avenida Sena Madureira. Nunca me esquecerei o nome da minha primeira professora, dona Benigna, que mesmo com essa benignidade, vez ou outra, puxava nossas orelhas. Em seguida, fomos para o Ginásio Paulistano, onde ficamos pouco tempo, porque logo nos mudamos para Guaxupé, em 1940.
Mamãe sempre foi dona de casa. Papai começou a trabalhar como mascate de casimiras aos doze anos e só parou quando viemos para cá, onde abriu uma loja de produtos para alfaiate - Ao Mundo das Casimiras – junto com o irmão Manuel. Inicialmente, na Avenida Conde Ribeiro do Valle, quando ainda era chamada Paulo Carneiro e os imóveis não eram numerados, onde hoje é o Banco Itaú. Depois, na antiga loja Kalil Silva e Irmão, na Rua João Pessoa. Foi uma das melhores lojas do ramo do Estado de Minas Gerais.
Papai escolheu Guaxupé porque fez muitos amigos na cidade durante suas viagens. Vendia na região, mas ficava hospedado no Hotel Cobra. Também ficamos neste hotel logo que chegamos. Era época de chuva e o caminhão com a mudança demorou a chegar, pois a estrada de Campinas à Guaxupé era de terra. Na primeira noite, após o jantar, meu irmão me convidou para conhecer a cidade. Paramos em frente ao Cine São Carlos. Perguntei, mas nós não vamos à cidade? Ele respondeu que ali era a cidade. Pra mim, foi uma decepção. Estava habituado à capital paulista, em que o centro, muito grande, era chamado de cidade e ficava distante dos bairros.
Moramos na Rua Barão de Guaxupé, numa casa tida como assombrada. Logo que chegamos, uma vizinha, dona Isméria, convidou mamãe para tomar café, fazendo a política da boa vizinhança. Perguntou se mamãe havia notado algo de estranho na casa, e ela respondeu que via uma pessoa. E apontou um homem que estava em uma fotografia exposta na sala, um irmão da nossa vizinha que havia morrido naquela casa. Meus pais sempre foram espíritas, mamãe achava natural esse tipo de visão.
Jayme e eu estudamos na Academia de Comércio São José. Comecei a falar no serviço de alto-falantes do Cine São Carlos em troca de entradas, junto com Geraldo Vômero e João Lepiane. A gente fazia os anúncios das casas comerciais e da programação do cinema, que tinha sessões diárias. Depois, Cláudio de Luna entrou para o time no lugar do João, que se mudou de Guaxupé.
De volta à capital
Ao concluir o propedêutico e o Tiro de Guerra, no final de 1944, voltei a São Paulo, sozinho, para estudar na Escola de Comércio Álvares Penteado, no largo São Francisco. Estudava à noite, de dia trabalhava como balconista da loja de casimiras dos Irmãos Gasparian, situada na Rua 25 de Março.
Depois de dois anos e pouco, fui trabalhar como chefe do departamento postal da VASP, responsável pela distribuição de toda a correspondência internacional dos Correios que chegava e saía de São Paulo. Eram vinte e dois estafetas subordinados a mim. Até hoje, conheço de cor os nomes das ruas do centro da cidade.
Como ganhava pouco, consegui a proesa de estudar três anos sem comprar um livro ou caderno. Certa vez, um professor testou meus conhecimentos e confirmou que eu prestava atenção nas aulas, tirava notas boas nas provas. Pagava uma pensão e a faculdade com meu dinheiro, nunca mais pedi ajuda aos meus pais.
Depois de formado, continuei na VASP. Um dia, um amigo chegou para postar uma carta e me disse que iria prestar concurso para escriturário da Prefeitura de São Paulo. Segundo ele, a prova seria muito difícil. Afirmou, ainda, que eu não conseguiria passar. Então, respondi, vou te mostrar: eu passei, ele não.
O salário era quase o dobro do que eu ganhava antes, e só seis horas diárias de trabalho, das 7 às 13h. Gostava de ser chefe nos lugares em que trabalhava. Logo cheguei à gerente de almoxarifado da divisão de engenharia sanitária, ou seja, limpeza pública. Nessa época, as finanças melhoraram.
À noite, encontrava os amigos de Guaxupé, que davam notícias da minha família. Habitualmente, nossos encontros aconteciam na Praça do Patriarca e em frente ao Cine Ipiranga.
Fernanda e Fernando
No fim da tarde de um sábado, precisei ir ao Brás. No ponto do bonde, troquei olhares com uma moça. Descemos na Praça da Sé e eu segui atrás dela. Na Galeria Prestes Maia, enquanto ela descia as escadas para o Vale do Anhangabaú, cruzei com um amigo de Guaxupé, Oriovaldo Camargo, que me fez perdê-la de vista. Nem quis conversar com ele, alegando que estava com pressa. Desci as escadas correndo e a vi na fila de espera de um ônibus. Também entrei nesta fila.
Por incrível que pareça, havia somente uma vaga no ônibus, e ao lado dela. Sentei-me, arriscando um olá. Até então, nunca havia trocado nomes com ninguém, como era costume nas paqueras. Quando ela perguntou meu nome, disse que me chamava Renato e, ela, Fernanda. Aí, percebi que tinha feito besteira ao mentir. Precisei mostrar minha carteira de identidade para desfazer o engano. Assim, começamos a namorar.
Nesse ínterim, pedi demissão da prefeitura porque não me adaptei ao ambiente de muita desonestidade. Certa feita, recusei um carregamento de ração porque não condizia com a qualidade descrita na solicitação de compra. O fornecedor tentou me subornar para eu aceitar a carga mesmo assim, mas recusei.
Passei a trabalhar como viajante, vendendo casimiras para lojistas. Viajava pelo estado de São Paulo inteiro e parte de Minas. Ficava cerca de vinte dias ou mais viajando. Namorava mais pelo telefone, por este motivo, nosso namoro durou cinco anos e meio. Novamente, não fiquei satisfeito com esse trabalho. Arrumei emprego de vendedor publicitário na LTB – Listas Telefônicas Brasileiras. Depois, fui para o setor de vendas da Swift. Por volta de 1951, Cláudio de Luna, que nessa época trabalhava na TV Tupi, me convidou para fazer um teste na rádio. Fui aprovado, comecei a fazer locução de um programa que ia ao ar das 5 às 6h30, o Alvorecer do Sumaré. O salário e o horário de trabalho eram muito ruins, não fiquei um ano. Nessa época, Hebe Camargo e sua irmã entraram para a Tupi, como Floripes e Florisbela. Walter Foster também era um dos locutores, falava muito bem.
Fernanda e eu nos casamos, em 31.10.52. No ano seguinte, abri uma lanchonete na Florêncio de Abreu. Jayme chegou a trabalhar uns meses comigo, mas ele e a esposa, Antonieta, não se adaptaram à capital.
Em 1957, fui para o departamento comercial de máquinas de escrever da IBM, onde fiquei por dois anos. Não faltou experiência na minha vida. Numa visita que fiz a Cimentos Perus - guardei o nome da secretária, Iorquina Fonseca, que precisei convencer para conseguir vender uma máquina de última geração – o diretor da empresa gostou da minha conversa e me convidou para trabalhar com ele, onde fiquei uma temporada grande, de onze anos, como chefe do departamento de vendas. Com a experiência adquirida, abri uma pedreira em Arujá, em sociedade com uns amigos, que durou outros onze anos.
Bacalhau para saborear
Em 1981, nos mudamos para Vargem Grande do Sul, para ajudar uma irmã da Fernanda que estava com problemas de saúde. Um ano depois, viemos para Guaxupé. Inicialmente, tive uma casinha de frios na Avenida Conde Ribeiro do Valle. Entre outros itens, vendia azeitonas gregas da melhor qualidade. Para valorizar ainda mais o produto, dizia que vinham das ‘ilhas salónicas’.
Pouco tempo depois, ganhei um novo sobrenome: Fernando, ‘o do bacalhau’, nome do barzinho que abri próximo ao Grupo Queridinha. Tinha fama de bravo. Havia quatro clientes, estudantes da faculdade, dois moços e duas moças, que toda sexta me pediam para fazer vinho quente. Ao passar em frente à vitrine do seo João Magnata, vi um jogo de copos ideal para servir vinho quente e comprei. Quando eles me perguntaram se tinha vinho quente e eu disse que sim, foi uma festa. Fiquei observando o comportamento deles. Assopravam o vinho antes de beber e deixavam o copo no balcão enquanto conversavam. Ao me pedirem para esquentar a bebida, disse que não.
Os pratos mais pedidos eram bacalhau de frigideira, bacalhau à Guimarães e uma invenção particular, bacalhau a ‘ilhas salónicas’ (risos), que inventei por causa de um funcionário da cooperativa que me pediu bacalhau desfiado, como costumava comer em São Paulo. Preparei o bacalhau cortado fininho, com cebola, alho, flores de couve-flor e ovos. Ele gostou tanto que procurou o mesmo prato em São Paulo e não achou.
Quando nos mudamos para cá, minha mulher já estava adoentada. Acabou falecendo em 1994. Foi uma perda muito difícil, não queria mais continuar na mesma casa em que morávamos. Então, levei o bar para Poços de Caldas, onde fiquei por dois anos. Antes, tentei me estabelecer em Paraty, mas não aguentei ficar lá vinte minutos: achei o local inadequado para se saborear um bom bacalhau.
Meu restaurantezinho foi bem-sucedido em Poços, mas não consegui me adaptar ao modo de vida das pessoas, menos caloroso que o daqui. Fiz amizade com o dono da Cantina do Araújo, Hélio, que ao elogiar meu bacalhau, respondi: Calma, não vim aqui pra te quebrar. Ele achou graça.
Retornei à Guaxupé, em 97. Trabalhei em diversos lugares preparando bacalhau, como Restaurante Gávea, Marcenaria, Lanchonete Sabores, Chalé (da Dr. João Carlos), entre outros. Atualmente, mesmo com problemas nas pernas, vendo postas de bacalhau limpas e dessalgadas, sob encomenda, pelo celular 9916-7325.”
Fernando mora com seu irmão, Jayme, um dos fundadores do Grupo Espírita Amor, União e Fraternidade, em Guaxupé. Gosta de ler livros espíritas e faz planos para o futuro próximo: se suas pernas melhorarem vai firmar uma parceria com a Pizzaria Ponto de Encontro, onde, mais uma vez, fará jus ao sobrenome “o do bacalhau”.
Fotos:
1) Os irmãos Fernando e Jayme, durante a infância, em São Paulo.
2) Anúncio da loja de aviamentos do pai, que Oscar Barbosa deu de presente a Fernando.
3) O jovem Fernando Jeronymo, em 1944.
4) Jayme e Fernando, atualmente, na sala da casa onde moram.
Fernando Jeronymo nasceu em 27.07.26, em São Paulo, segundo filho do casal de portugueses Ana Maria Barreira e Augusto do Nascimento Jeronymo. Chegou em Guaxupé adolescente e, poucos anos depois, partiu novamente à sua terra natal, encantado com as possibilidades da cidade grande. Após muitas experiências, há cerca de trinta anos, ao voltar para o interior, tornou-se conhecido por Fernando “o do bacalhau”, uma alusão às suas origens. Criado na doutrina espírita, ao falar sobre si mesmo, afirma: tem sempre um depois na minha vida.
“O sonho dourado dos italianos, árabes e portugueses era vir para o Brasil. Quando solteiros, meus pais moravam na região de Trás os Montes. Ambos emigraram de Portugal, em 1910, mas só se conheceram em São Paulo.
Passei minha infância na Vila Mariana. A rua onze de junho era de terra e havia dois córregos perto de casa. As brincadeiras eram na rua: jogar bola, brincar de peão e empinar papagaio. Tinha um jogo chamado castelo, semelhante ao baseball americano, que jogávamos com as bolas de tênis que escapavam do Clube Sírio e caiam no mato.
Lembro-me do bonde elétrico e que havia poucos carros. A avenida onze de junho tinha 1.500 metros e apenas um telefone, o do armazém de secos e molhados. Às vezes, papai ficava mais de um mês fora, viajando pelo Brasil. Deixava recados para minha mãe com o dono da mercearia.
Aos doze anos, eu buscava, na Rua 25 de Março, o dinheiro que papai mandava para as despesas do mês: 500 mil réis. Recebíamos através de um de seus fornecedores, que ficava na Rua 25 de Março. Mamãe, temendo que eu fosse roubado, punha um alfinete para fechar o bolso interno do meu paletozinho, onde eu guardava o dinheiro.
Meu irmão Jayme, dois anos mais velho, e eu estudamos no Grupo Escolar Pedro Voss, na Avenida Sena Madureira. Nunca me esquecerei o nome da minha primeira professora, dona Benigna, que mesmo com essa benignidade, vez ou outra, puxava nossas orelhas. Em seguida, fomos para o Ginásio Paulistano, onde ficamos pouco tempo, porque logo nos mudamos para Guaxupé, em 1940.
Mamãe sempre foi dona de casa. Papai começou a trabalhar como mascate de casimiras aos doze anos e só parou quando viemos para cá, onde abriu uma loja de produtos para alfaiate - Ao Mundo das Casimiras – junto com o irmão Manuel. Inicialmente, na Avenida Conde Ribeiro do Valle, quando ainda era chamada Paulo Carneiro e os imóveis não eram numerados, onde hoje é o Banco Itaú. Depois, na antiga loja Kalil Silva e Irmão, na Rua João Pessoa. Foi uma das melhores lojas do ramo do Estado de Minas Gerais.
Papai escolheu Guaxupé porque fez muitos amigos na cidade durante suas viagens. Vendia na região, mas ficava hospedado no Hotel Cobra. Também ficamos neste hotel logo que chegamos. Era época de chuva e o caminhão com a mudança demorou a chegar, pois a estrada de Campinas à Guaxupé era de terra. Na primeira noite, após o jantar, meu irmão me convidou para conhecer a cidade. Paramos em frente ao Cine São Carlos. Perguntei, mas nós não vamos à cidade? Ele respondeu que ali era a cidade. Pra mim, foi uma decepção. Estava habituado à capital paulista, em que o centro, muito grande, era chamado de cidade e ficava distante dos bairros.
Moramos na Rua Barão de Guaxupé, numa casa tida como assombrada. Logo que chegamos, uma vizinha, dona Isméria, convidou mamãe para tomar café, fazendo a política da boa vizinhança. Perguntou se mamãe havia notado algo de estranho na casa, e ela respondeu que via uma pessoa. E apontou um homem que estava em uma fotografia exposta na sala, um irmão da nossa vizinha que havia morrido naquela casa. Meus pais sempre foram espíritas, mamãe achava natural esse tipo de visão.
Jayme e eu estudamos na Academia de Comércio São José. Comecei a falar no serviço de alto-falantes do Cine São Carlos em troca de entradas, junto com Geraldo Vômero e João Lepiane. A gente fazia os anúncios das casas comerciais e da programação do cinema, que tinha sessões diárias. Depois, Cláudio de Luna entrou para o time no lugar do João, que se mudou de Guaxupé.
De volta à capital
Ao concluir o propedêutico e o Tiro de Guerra, no final de 1944, voltei a São Paulo, sozinho, para estudar na Escola de Comércio Álvares Penteado, no largo São Francisco. Estudava à noite, de dia trabalhava como balconista da loja de casimiras dos Irmãos Gasparian, situada na Rua 25 de Março.
Depois de dois anos e pouco, fui trabalhar como chefe do departamento postal da VASP, responsável pela distribuição de toda a correspondência internacional dos Correios que chegava e saía de São Paulo. Eram vinte e dois estafetas subordinados a mim. Até hoje, conheço de cor os nomes das ruas do centro da cidade.
Como ganhava pouco, consegui a proesa de estudar três anos sem comprar um livro ou caderno. Certa vez, um professor testou meus conhecimentos e confirmou que eu prestava atenção nas aulas, tirava notas boas nas provas. Pagava uma pensão e a faculdade com meu dinheiro, nunca mais pedi ajuda aos meus pais.
Depois de formado, continuei na VASP. Um dia, um amigo chegou para postar uma carta e me disse que iria prestar concurso para escriturário da Prefeitura de São Paulo. Segundo ele, a prova seria muito difícil. Afirmou, ainda, que eu não conseguiria passar. Então, respondi, vou te mostrar: eu passei, ele não.
O salário era quase o dobro do que eu ganhava antes, e só seis horas diárias de trabalho, das 7 às 13h. Gostava de ser chefe nos lugares em que trabalhava. Logo cheguei à gerente de almoxarifado da divisão de engenharia sanitária, ou seja, limpeza pública. Nessa época, as finanças melhoraram.
À noite, encontrava os amigos de Guaxupé, que davam notícias da minha família. Habitualmente, nossos encontros aconteciam na Praça do Patriarca e em frente ao Cine Ipiranga.
Fernanda e Fernando
No fim da tarde de um sábado, precisei ir ao Brás. No ponto do bonde, troquei olhares com uma moça. Descemos na Praça da Sé e eu segui atrás dela. Na Galeria Prestes Maia, enquanto ela descia as escadas para o Vale do Anhangabaú, cruzei com um amigo de Guaxupé, Oriovaldo Camargo, que me fez perdê-la de vista. Nem quis conversar com ele, alegando que estava com pressa. Desci as escadas correndo e a vi na fila de espera de um ônibus. Também entrei nesta fila.
Por incrível que pareça, havia somente uma vaga no ônibus, e ao lado dela. Sentei-me, arriscando um olá. Até então, nunca havia trocado nomes com ninguém, como era costume nas paqueras. Quando ela perguntou meu nome, disse que me chamava Renato e, ela, Fernanda. Aí, percebi que tinha feito besteira ao mentir. Precisei mostrar minha carteira de identidade para desfazer o engano. Assim, começamos a namorar.
Nesse ínterim, pedi demissão da prefeitura porque não me adaptei ao ambiente de muita desonestidade. Certa feita, recusei um carregamento de ração porque não condizia com a qualidade descrita na solicitação de compra. O fornecedor tentou me subornar para eu aceitar a carga mesmo assim, mas recusei.
Passei a trabalhar como viajante, vendendo casimiras para lojistas. Viajava pelo estado de São Paulo inteiro e parte de Minas. Ficava cerca de vinte dias ou mais viajando. Namorava mais pelo telefone, por este motivo, nosso namoro durou cinco anos e meio. Novamente, não fiquei satisfeito com esse trabalho. Arrumei emprego de vendedor publicitário na LTB – Listas Telefônicas Brasileiras. Depois, fui para o setor de vendas da Swift. Por volta de 1951, Cláudio de Luna, que nessa época trabalhava na TV Tupi, me convidou para fazer um teste na rádio. Fui aprovado, comecei a fazer locução de um programa que ia ao ar das 5 às 6h30, o Alvorecer do Sumaré. O salário e o horário de trabalho eram muito ruins, não fiquei um ano. Nessa época, Hebe Camargo e sua irmã entraram para a Tupi, como Floripes e Florisbela. Walter Foster também era um dos locutores, falava muito bem.
Fernanda e eu nos casamos, em 31.10.52. No ano seguinte, abri uma lanchonete na Florêncio de Abreu. Jayme chegou a trabalhar uns meses comigo, mas ele e a esposa, Antonieta, não se adaptaram à capital.
Em 1957, fui para o departamento comercial de máquinas de escrever da IBM, onde fiquei por dois anos. Não faltou experiência na minha vida. Numa visita que fiz a Cimentos Perus - guardei o nome da secretária, Iorquina Fonseca, que precisei convencer para conseguir vender uma máquina de última geração – o diretor da empresa gostou da minha conversa e me convidou para trabalhar com ele, onde fiquei uma temporada grande, de onze anos, como chefe do departamento de vendas. Com a experiência adquirida, abri uma pedreira em Arujá, em sociedade com uns amigos, que durou outros onze anos.
Bacalhau para saborear
Em 1981, nos mudamos para Vargem Grande do Sul, para ajudar uma irmã da Fernanda que estava com problemas de saúde. Um ano depois, viemos para Guaxupé. Inicialmente, tive uma casinha de frios na Avenida Conde Ribeiro do Valle. Entre outros itens, vendia azeitonas gregas da melhor qualidade. Para valorizar ainda mais o produto, dizia que vinham das ‘ilhas salónicas’.
Pouco tempo depois, ganhei um novo sobrenome: Fernando, ‘o do bacalhau’, nome do barzinho que abri próximo ao Grupo Queridinha. Tinha fama de bravo. Havia quatro clientes, estudantes da faculdade, dois moços e duas moças, que toda sexta me pediam para fazer vinho quente. Ao passar em frente à vitrine do seo João Magnata, vi um jogo de copos ideal para servir vinho quente e comprei. Quando eles me perguntaram se tinha vinho quente e eu disse que sim, foi uma festa. Fiquei observando o comportamento deles. Assopravam o vinho antes de beber e deixavam o copo no balcão enquanto conversavam. Ao me pedirem para esquentar a bebida, disse que não.
Os pratos mais pedidos eram bacalhau de frigideira, bacalhau à Guimarães e uma invenção particular, bacalhau a ‘ilhas salónicas’ (risos), que inventei por causa de um funcionário da cooperativa que me pediu bacalhau desfiado, como costumava comer em São Paulo. Preparei o bacalhau cortado fininho, com cebola, alho, flores de couve-flor e ovos. Ele gostou tanto que procurou o mesmo prato em São Paulo e não achou.
Quando nos mudamos para cá, minha mulher já estava adoentada. Acabou falecendo em 1994. Foi uma perda muito difícil, não queria mais continuar na mesma casa em que morávamos. Então, levei o bar para Poços de Caldas, onde fiquei por dois anos. Antes, tentei me estabelecer em Paraty, mas não aguentei ficar lá vinte minutos: achei o local inadequado para se saborear um bom bacalhau.
Meu restaurantezinho foi bem-sucedido em Poços, mas não consegui me adaptar ao modo de vida das pessoas, menos caloroso que o daqui. Fiz amizade com o dono da Cantina do Araújo, Hélio, que ao elogiar meu bacalhau, respondi: Calma, não vim aqui pra te quebrar. Ele achou graça.
Retornei à Guaxupé, em 97. Trabalhei em diversos lugares preparando bacalhau, como Restaurante Gávea, Marcenaria, Lanchonete Sabores, Chalé (da Dr. João Carlos), entre outros. Atualmente, mesmo com problemas nas pernas, vendo postas de bacalhau limpas e dessalgadas, sob encomenda, pelo celular 9916-7325.”
Fernando mora com seu irmão, Jayme, um dos fundadores do Grupo Espírita Amor, União e Fraternidade, em Guaxupé. Gosta de ler livros espíritas e faz planos para o futuro próximo: se suas pernas melhorarem vai firmar uma parceria com a Pizzaria Ponto de Encontro, onde, mais uma vez, fará jus ao sobrenome “o do bacalhau”.
Fotos:
1) Os irmãos Fernando e Jayme, durante a infância, em São Paulo.
2) Anúncio da loja de aviamentos do pai, que Oscar Barbosa deu de presente a Fernando.
3) O jovem Fernando Jeronymo, em 1944.
4) Jayme e Fernando, atualmente, na sala da casa onde moram.
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