uma mulher resolvida

Amanhã vamos votar, novamente. Estou meio desanimada, como também demonstra a maioria dos meus amigos. Ontem assisti ao debate na TV, tudo tão comportadinho. Certamente, faltou o Plínio de Arruda Sampaio... Enfim, já decidi pra quem darei meu voto. Podem até tentar desvirtuar os motivos que levaram 20 milhões de eleitores a votarem na Marina, mas as respostas dos dois candidatos, ontem, à pergunta do Pablo, do Pará, sobre uma possível solução para evitar as queimadas e introduzir a sustentabilidade nas ações do governo, foram superficiais, se limitaram à Amazônia. Mas vou votar consciente, novamente pautada nos meus princípios, naquilo que acredito ser melhor, no momento, para o Brasil e para o município onde vivo. Não conseguiria anular meu voto nesta hora de decisão, nem abandonar minhas raízes. Mas essa bipolaridade PT - PSDB já cansou.


MINHA HISTÓRIA


Uma mulher resolvida

Antônia Paulina de Souza Escarassatti nasceu em 30.05.26, na Fazenda Catitó, uma entre os onze filhos de José Paulino de Souza e Luíza Camila de Souza Morais. Como ela mesma diz, nascida, batizada e casada em Guaranésia, uma mulher dos tempos da máquina-fogo e dos dormentes da Mogiana. Aos dezessete anos dona Tonica teve o primeiro de nove filhos, e há dois anos perdeu a irmã caçula, mais nova que seu primogênito. Do alto da sua simplicidade e sabedoria, costuma lembrar os filhos: “Ceis num clamam não, olha o que eu passei, hein!”

“Papai era um crânio, fazia de tudo, era carpinteiro e marceneiro. Operava a máquina de limpar café tocada à água. Na fazenda também tinha um moinho de pedra que fazia fubá, máquina de limpar arroz e de cortar cana. Alembro do som dos carros de boi puxando os produtos da lavoura para a tulha.
Nossas brincadeiras aconteciam no terreirão de café: esconde-esconde, pega-pega. Nos finais de semana ia com minhas amigas pra estação Catitó ver o trem passar. Dentro dos vagões, os moços abanavam a mão pra gente. Perto da estação havia a venda de secos e molhados do Abrão, vendia de tudo, até tecidos, era uma beleza.
Fazia compras lá, mas comprava pouco. Porque plantava na roça o que precisava: arroz, milho, feijão. Engordava porco. A cada três meses matava um e já punha outro pra engordar. Via minha mãe matar os porcos, ela fazia chouriço com o sangue e linguiça com a barrigada. Minha mãe era resolvida, não esperava meu pai pra nada. Puxei a ela.
Estudei pouca coisa, aprendi malemá a escrever meu nome. Conta, sei fazer muito pouco. A escolinha da fazenda funcionava num barracão bem arrumadinho, com carteiras, onde estudei até o 3º ano primário.
Colhia café na Fazenda da Serra, do João Zelante. Todas as meninas trabalhavam nessa lavoura. Na Catitó também fiz muita coisa, capinei arroz e feijão. Foi lá que conheci meu marido, José Escarassatti, conhecido como Juca. Quando eu tinha 14 anos, ele se mudou pra fazenda com a família.
Uma das irmãs dele começou a namorar meu irmão, Alcides. Minha futura sogra não queria o namoro, italiano não gostava de pele morena, dizia que a gente era mouro, me chamava de negrinha. Não adiantou nada. Alcides casou-se com Iolanda.
Juca, então com 26 anos, pediu permissão à mamãe pra me namorar. Ela disse pra ele esperar eu completar 16 anos. Nesses dois anos de namoro, aprendi a costurar com a mesma costureira que fez meu vestido de casamento, Olímpia. Ia e voltava da casa dela levando a maquininha de costura da minha mãe na cabeça.
Os copos de leite do meu buquê de noiva foram apanhados na Catitó. Dia 18.07 de 1942, os convidados, meu noivo e eu embarcamos juntos no trem da Mogiana para Guaranésia, onde seria realizada a cerimônia. Trocamos de roupa na casa de um parente e seguimos, a pé, pra igreja. Depois, o cortejo partiu, novamente a pé, para a estação, tomando o trem da tarde.
A festa aconteceu no quintal de casa: um jantar seguido de baile. A música ficou por conta dos meus irmãos, Mário e Alcides, que tocavam sanfona e violão, respectivamente. Nesta noite, meu marido e eu dormimos separados, na casa dos meus pais. No dia seguinte, viajamos para Ipomeia, perto de São Sebastião do Paraíso, onde moramos durante sete anos.
Lá vai a vida a rodar
Ipomeia era roça que nem a Catitó. Era um lugar muito bão pra se viver, tinha água de mina encanada e a vista era uma beleza, a gente via longe. Era dona de casa e costureira.
Meu marido era portador de trem, ficava numa guarita dando sinal verde para o trem parar na estação, para embarque e desembarque de passageiros. Os trens eram tocados a fogo. Na estação ficavam estocadas pilhas de lenha, tudo madeira cortadinha.
Nessa época, meus sogros, José e Adelina, foram nossos vizinhos de parede e meia, moraram na casa do telegrafista da Mogiana, que estava desocupada.
Quando meus sogros retornaram para o Paraná, voltei à Catitó pra esperar o nascimento do meu primeiro filho. Mamãe estava grávida da minha irmã caçula. Tive complicações no parto, sofri três dias até ele nascer. Desde então, perdi a firmeza no pé esquerdo; mas nunca tomei remédio, nem nada.
Assim, após dez dias, voltamos para Ipomeia. Eu tinha apenas dezessete anos e não sabia nada da vida. Naquele tempo, usava enfaixar o corpo do recém-nascido até o pé. Jair nasceu com uma mancha escura na perna. Quando tirei a faixa, percebi que havia um buraco profundo nessa mancha. O médico, em São Sebastião do Paraíso, disse que seria preciso cortar a perna dele. Durante a viagem de trem, meu marido e eu encontramos uma mulher que nos aconselhou a procurar um farmacêutico, José Ananias, também em Paraíso, antes de tomarmos qualquer decisão. Falou que ele curava até ferida brava.
Decidimos tentar. O farmacêutico mandou lavar e ferver as folhas de uma planta chamada ‘pé de perdiz’. Fazia os curativos com fé. Fiz promessa pra Santa Cruz. Graças a Deus, nosso filho foi curado.
Ainda estava amamentando quando engravidei do 2º filho, que nasceu um mês depois do primeiro completar um ano. Só percebi que estava grávida quando Hélio mexeu na minha barriga. Tivemos mais três filhos em Ipomeia: Nilton, Nelson e Sebastião. O caçula tinha apenas 20 dias quando nos mudamos para Guaxupé.

Lá vai o trem com o menino
Era fevereiro de 1950. Nos mudamos para uma casa perto desta onde moro atualmente com Sebastião, meu filho, que logo conseguimos comprar: eu na máquina de costura, o Juca na estrada de ferro. Costurei muitos pijamas pra loja Barateiro. Também presse povo todo da vizinhança. Trabalhei demais. Nunca paguei uma peça de roupa pros meus filhos, todas foram feitas por mim. Costurava mais pra homem, mas também fiz muito vestido de noiva e de debutante.
Aqui, tive mais dois filhos e duas filhas: Maria Aparecida, Antônio e Marilda; José Filho, o caçula, nasceu quando eu tinha 36 anos. Juca não gostava quando nascia mulher. Antes da Marilda, sofri três abortos. O médico, Dr. Antônio Estole, queria fazer curetagem sem anestesia, mas não deixei. De tanto me ver abortar, as freiras até comemoraram o nascimento da Marilda. Criei esses filhos mais sozinha. Meu marido vivia na linha. Os vizinhos me ajudavam levando à estação o caldeirão de comida que o guarda da ferrovia transportava até onde Juca estivesse.
Muitas vezes ele saía às três da manhã e eu já ia pra máquina de costura, com os filhos dormindo. Cada ano era um que entrava na escola. Na época do Tiro de Guerra, então, quantas vezes lavei farda e coloquei-a pra secar dentro de uma forma, no forninho de lenha, só deixando a porta aberta pra não queimar. Depois, pra engomar, fazia uma calda com maisena e passava a farda com ferro de brasa. Não tinha ferro elétrico, era uma pobreza. Meus sete filhos fizeram Tiro de Guerra. Uma vez, o sargento veio em casa me cumprimentar, dizendo, ‘a senhora fez mais tiro de guerra do que eles’.


Lá vai ciranda e destino*
Operei de catarata e continuo fazendo barra de calça preta e azul-marinho. Continuo pegando serviços de costura. Deus me livre de ficar parada, sem fazer nada.
Em 96 meu marido morreu. Juca nunca me deixou tirar título de eleitor. Quando adoeceu, ele pediu pra nossa filha, Marilda, tirar meus documentos pra eu poder receber a aposentadoria no lugar dele. Até então, não tinha nenhum.
No fórum, me disseram que precisaria do título de eleitor pra conseguir os outros registros. Votei só duas vezes na minha vida e, nas duas, ganhei: Dr. Heber foi eleito prefeito, e Elias José e Baú, vereadores. Meu marido nunca soube. Quando os candidatos me procuravam na roça pedindo voto, ele dizia: lá não é lugar de mulher.
Juca só queria filho homem. Fiz muita coisa escondido dele, fiz tanto gosto pras minhas filhas... Elas não perdiam um baile do Clube Guaxupé. Maria debutou, Marilda se formou na Academia de Comércio.
Há cerca de onze anos, passei a frequentar o Colmeia, clube da terceira idade. Adoro bingo. Antes, tinha sorte, ganhei duas bicicletas, em dois anos consecutivos, no jogo. Mas me secaram tanto que, atualmente, não ganho mais nada. Mesmo assim, toda terça-feira jogo na casa de um casal de amigos.
Também gosto de prosear com os vizinhos no banco que fica em frente da minha casa. Outra diversão é participar das festas da família, hoje tenho 22 netos e doze bisnetos. Não sou de ir à igreja, mas assisto às missas de Aparecida pela TV, todo domingo. Passei por muitas dificuldades, mas venci. Deus olhava tanto na minha boca... Ele atendia muito eu.”

Dona Tonica criou seus nove filhos sem se abalar com as adversidades. Sua maior alegria é ver todos criados e casados. Não esperava ver seu primogênito completar 67 anos. Uma grande tristeza foi perder o filho, Toninho, há catorze anos. Cinco anos atrás, ela sofreu uma cirurgia na perna. Conta com orgulho que o médico, Roberto Vergili, foi seu vizinho durante muitos anos, quando criança.

Fotos:
1) Em 42, no casamento com Juca, Tonica segura o buquê de flores colhidas na fazenda.
2) Tonica, com os filhos Nelson, José, Nilton, Jair e Hélio.
3) Entre as filhas, Marilda e Maria, na comemoração dos 80 anos.
4) Entre as oito netas, no aniversário de 75 anos.
5) Vó Tonica, muito paparicada pelos netos homens.


Agradecimento especial a Felipe Ferreira de Lima, pela indicação de Dona Tonica.
* Trechos de O Trenzinho Caipira, de Villa-Lobos, letra de Ferreira Gullar.

Comentários

Postagens mais visitadas