guerreira da roça

Antes de contar a história da Margarida, uma senhora de 68 anos que se mudou para o Lar São Vicente por vontade espontânea, tenho que comentar as reportagens publicadas no jornal sobre dois julgamentos de homícidio, um em Guaxupé, outro em Muzambinho. Conforme o publicado, ambos os criminosos confessos, pegos em flagrantes, tiveram suas penas atenuadas por serem réus primários, Dalton Silva, autor da morte do açougueiro Major, pegou dez anos, e José Donizete da Silva, que matou o engenheiro Eduardo Carvalho Delgado, sete, podendo ainda recorrer em liberdade... Dá um bom material de pensamento, não? Assisti a um filme do Wim Wenders, no Futura, O Amigo Americano, em que o personagem Tom Ripley diz: Não há nada a temer, a não ser o nosso medo. E disse outro poeta, "Em verdade temos medo, nascemos escuro, as existências são poucas, carteiro, ditador, soldado, nosso destino, incompleto..." E fico eu a cismar sobre crimes perfeitos, "mas crimes perfeitos não deixam suspeitos"...

Vamos à história dela...



Margarida Godói da Silva nasceu em 05.09.43, em Nova Resende, a quarta filha de Francisco Serafim Godói e Benedita Maria de Piza. Amorosa, diz que os tempos em que viveu com os pais e os irmãos foram os mais felizes da sua vida. Atualmente no Lar São Vicente, Margarida afirma que este lugar lhe proporciona a mesma sensação de estar na casa do pai, com a família. Analfabeta, muito cedo trocou os cadernos pela enxada, a ferramenta de trabalho que junto com Deus lhe deu o pão de cada dia. Mulher simples e decidida, após o casamento chegou a deixar a enxada para lavar roupas para fora. Com seu palavreado humilde, faz questão de defender suas origens: “Uma coisa a senhora vai escrever pra mim, sou caipirona da roça e com orgulho.”

“Nasci em Nova Resende num lugar chamado Rio Claro, no sítio do meu avô paterno, Joaquim Serafim. O pai trabalhava na enxada, de empregado nas fazendas. A mãe trabalhava em casa e, também, costurava para fora, tinha muitas freguesas. Os dois eram abençoados, nunca xingaram nóis, nem ensinaram os filhos a brigar ou xingar.
Somos em onze irmãos, mais um que morreu recém-nascido e outros dois que perdi muito cedo. Quando eu tinha uns nove anos meu irmão Zé Francisco, um ano mais novo que eu, morreu de repente. Ele clamava de dor na barriga e eu o levava com meus pais até a farmácia, a pé, debaixo de sol e poeira. Tadinho do meu pai, pra tudo quanto era coisa ele contava comigo. O farmacêutico, Nicésio, dava remédio pra tirar a dor, mas não adiantava. Guardo a imagem do Zé Francisco com o bracinho no berço da nossa irmãzinha Rita, que ele olhava e chamava de anã.
O pai moía cana pro Zé Albino, dono de uma fazenda vizinha, fazendo rapadura e melaço. O resto que ficava no tacho ele batia até virar uma bola branca de puxa que eu ia buscar para comer com meus irmãos.
Por volta dos meus dez anos nos mudamos pra fazenda Santa Esméria. A escolinha da fazenda ficava ao lado da estação de trem. O local não tinha banheiro nem água pra beber. A professora, dona Edna, mandava os alunos copiar o que estava escrito no quadro, o dia inteiro, enquanto ela fazia o enxoval do seu neném. Não gostava daquilo, então, falei pro pai que não queria estudar e fui com ele pra enxada.
Comecei com capina de arroz e feijão terminei na capina de café, só não fiz cerca de arame e nem rocei pasto porque ele não deixou. Eu levantava às quatro horas, acendia o fogo, fazia o café e punha o feijão pra cozinhar porque lá em casa todos gostavam do feijão do dia. Mas eu é que tinha que dar conta.
O dia mal clareava, eu já catava a lata e ia pra bica buscar água, pertinho de casa. Eu enchia um barril e ainda deixava a lata cheia. O pai ia mais cedo com nossas enxadas. Eu ficava ajudando a mãe nos serviços de casa enquanto ela preparava o almoço, que depois eu levava pro pai e meu irmão Vítor Serafim, às 8h30. Eu me sentava com eles em alguma sombrinha pra comer.
Ao meio-dia mamãe levava a merenda pra gente. Um dia era bolo de fubá ou pau-a-pique com amendoim, em outro pão e biscoito, tudo feito por ela, que trabalhava muito, por isto é que eu apertei cedo no serviço.
O pai sempre acertava a hora de parar de trabalhar, no fim da tarde. Ele olhava pra cima e dizia, minha filha, vamo juntar os trem que deve ser umas cinco horas. Mal acabava de falar e já se ouvia a sereia de Guaxupé, que tocava todo dia nesse horário.
Eu usava um lenço e um chapelão, pra proteger meu cabelo do pó e do sol. Chegava em casa mal tirava o chapéu e toca a encher o barril d’água que já estava vazio. E contente! Depois de lavar as panelas do almoço, eu preparava a água do banho do pai. Só depois é que eu tomava banho, também de bacia. Esquentava água no fogão, a lenha a gente buscava longe, nos matos, carregando na cabeça. Como eu trabalhava descalço, todo dia limpava as unhas do pé com um palito de fósforo. Não tinha os xampus de hoje em dia, mas meu cabelo estava sempre brilhante.
Era mocinha quando meu irmão mais novo, de um ano e seis meses, Benedito, ficou doente. Fomos com ele a pé para Muzambinho. O primeiro médico que conheci foi Dr. Ismael, que mandou sua esposa e ajudante, dona Zefina, dar uma injeção no meu irmão. Pela cara dos dois percebi que não ia adiantar muito, mas fiquei quieta. No caminho, o pai percebeu que meu irmãozinho já estava morto. Sentei na beira da estrada para chorar, com a mãe ao meu lado.

Zona rural de Guaxupé
Era mocinha quando nos mudamos pros Ferraz, em Guaxupé. O dono da fazenda, seo Manoel Ferraz era muito bom, nos deixava plantar alimentos para nosso consumo no meio das carreiras de café, como amendoim, milho, batatinha, quiabo, feijão, mandioca... Tinha comida pro ano todo e, também, a gente não precisava comprar carne, pois criava porco e galinha.
A mãe fritava carne e guardava nas latas com gordura de porco. Também retaiava os gominhos de costela, tirava pedaços de pernil, passando tudo num bom tempero com pimenta do reino, sal e alho. Em seguida, punha esses pedaços de carne em cima do fogão pra secar e defumar. Não tinha mosquito que chegasse perto por causa do tempero.
Eu trabalhava de calça comprida debaixo do vestido. Quando terminava de capinar a empreita, eu podia ficar em casa, se quisesse. Mas preferia pegar trabalho por dia para ganhar um dinheirinho pras minhas despesas pessoais.
Quem tomava conta do eito das mulheres era Joana. Em um dia de chuva ela falou pra turma: Junta os trem, ismenina e vamo pro rancho que essa chuva não é boa. E completou, para mim: Óia, Margarida, se ocê engolir sua língua eu vou deixar. Diziam que os ferros da ponte puxavam os raios. Eu usava uma ponte móvel de quatro dentes da frente, feita por seo Zoti, meu dentista. Eu ri muito por causa do comentário da Joana.
Com o dinheiro, comprava uma roupa e um calçado na loja do seo Miguel Abrão, ao lado da ponte do Taboão. O pai vinha junto, carregando meu dinheiro. A gente vivia no meio do mato, não usava bolsa nem nada. O troco eu dava pro meu pai comprar macarrão, que ele adorava, cozido com frango e batatinha inglesa.

De repente, casada
Eu não pensava em casar. Comecei a namorar Pedro Alves da Silva aos dezoito anos. Um dia, cheguei em casa e o pai falou que o Pedro mandou o irmão dele pedir minha mão em casamento. Noutro dia, ele deixou as alianças pro pai me entregar. Ele não me perguntou pessoalmente, em nenhuma das duas vezes, não achei isso certo. Se tivesse conversado comigo eu teria dito pra gente esperar um pouco, até ajeitar as coisas.
Ele tava com muita pressa de casar. É que tinha outros rapazes na roça que gostavam de mim, mas eu nem ligava. Não é pra eu me gabar, era uma moça muito bonita. Também, tinha vergonha de me casar com Pedro, porque ele era estudado e eu não sabia nem assinar meu nome. Mas ele não se importava, nunca jogou na minha cara o fato de eu não saber ler nem escrever.
Nos casamos em 28.11.64, na Catedral. Tinha um salão de festa na fazenda, onde a Joana e outras mulheres prepararam um bailão pra gente. Como Pedro era motorista da fazenda, continuamos vivendo por lá, mas parei de trabalhar, ele não quis que eu fosse pra roça. Eu cuidava da casa e criava galinhas.

Luta contra a depressão
Tinha um ano de casada e estava grávida quando meu marido quis mudar pra Guaxupé. Aí, mudemos. Logo nasceu nosso filho, Márcio. No início, moramos na cidade, mas como Pedro puxava turma pra fazenda do Zé Ribeiro, depois nos mudamos pra fazenda Barro Preto, onde ficamos uns cinco anos.
Meu marido, que não bebia e não fumava, passou a beber e fumar. Começou a judiar de mim. Eu voltei a trabalhar na roça, levava meu filho pequeno comigo, que ficava quietinho ao meu lado, embaixo de uma sombrinha que eu levava para ele não apanhar sol.
Nessa época, entrei em depressão, não comia, não dormia, sentia um aperto no peito. Tinha 29 anos quando fui internada no sanatório de Monte Santo e Márcio, por volta dos sete, precisou ficar com minha sogra, que foi muito boa pra nóis.
Fiquei em tratamento durante uns três meses, tomei até choque, tudo sem ver. Lúcia, uma das enfermeiras, gostou do meu jeito calmo e me convidou para ficar trabalhando no hospital, mas eu tinha meu filho e preferi voltar.
O médico do hospital psiquiátrico me aconselhou a benzer no centro espírita. Márcio foi comigo até o Nova Era. Depois, seo Zé Olegário passou a me benzer em casa. Eu quase não saía, acostumei a ficar em casa. Mas participei de todas as reuniões de escola do meu filho, desde o Major Washington até o Polivalente.
Nessa época, morava na Vila Coragem. Retomei meus afazeres de casa e comecei a lavar roupas pra fora. Tinha muitas freguesas, só aos sábados tirava o dia para limpar minha casa. Alguns anos depois, o médico mandou eu parar com esse serviço por causa de um problema na coluna, que carrego até hoje.
Meu marido saía na sexta e só voltava na segunda. Gastou todo o dinheiro que eu ganhava, mas graças a Deus não me fez falta. Tadinho, ele trabalhava, também, e nunca deixou faltar nada em casa. Só não foi um pai e um marido muito presente.
Um dia, ele perdeu na porta de casa, uma carteira com trezentos cruzeiros, que eu achei e guardei. Como de costume, ele se arrumou pra sair na sexta-feira, mas como perdeu a carteira e só percebeu na rua, voltou logo. Colocou anúncio no rádio dizendo que dentro da carteira só tinha documentos. Aproveitando essa deixa, peguei o dinheiro e devolvi somente a carteira pra ele, que ficou bem quietinho. Gastei tudo na Casa das Linhas, comprando roupas para meu filho e para nossa casa.
Meu marido disse que eu o roubei, mas não me senti culpada, nunca roubei nada de ninguém. A vida toda peguei medo de estragar as coisas dos outros, de tanto ouvir o pai falando que o que era dos outros, era dos outros, pra gente não passar nem perto.

Um novo caminho
Fiquei casada durante 44 anos. Tenho meu filho que é abençoado. Meu marido morreu há quase três anos. Ficou mais de dois na cama, paralisado por causa de dois derrames. Dependia da gente pra tudo, meu filho ajudou muito, mas como trabalhava, não podia ficar em casa o tempo todo. Mesmo com tudo que passei, lembro dele com saudade.
Meu filho casou cerca de vinte anos atrás. Após a morte do Pedro, fui morar nos fundos da casa onde ele mora com minha nora e três netos. Mas eu vivia triste, triste, mesmo. Certa manhã, depois da missa de domingo, na Catedral, saí caminhando e, quando dei por mim, estava numa rua totalmente fora do meu caminho. Comecei a ter essas ausências quando o marido ainda estava vivo. Percebi que não podia ficar mais sozinha.
Aí, pedi para Deus me mostrar um caminho e me lembrei do Lar São Vicente. Vai fazer quatro meses que estou aqui, de onde só Deus irá me tirar. Meu filho vem me ver duas vezes por semana, não queria que eu me mudasse pra cá de jeito nenhum. Entrar aqui foi a mesma coisa que chegar no céu, porque não preciso sair pra comprar uma bala. Ajudo a rezar os terços na igreja do Lar. As cozinheiras brincam comigo, já fiz muitos amigos e os de fora vêm me visitar. Ajudo a pintar pano de prato, estou à disposição para o que for preciso.”
Na última terça, Margarida completou 68 anos como de costume, sem festa de aniversário. Ela sempre foi muito ligada aos irmãos, principalmente, a Maria das Dor (Dores), um pouco mais velha que ela. Na mocidade, quando a irmã se casou e foi viver em outra casa da colônia, Margarida chorou durante muito tempo de saudades dela. Ela gostaria muito de receber a visita de Maria das Dores no Lar, que está aberto diariamente, das 15h30 às 16h.

Fotos:
1) Margarida, aos 28 anos, na sala da sua casa na fazenda Barro Preto.
2) Margarida passa as tardes pintando panos de prato com Tatieli, terapeuta ocupacional.
3) No Lar São Vicente, Margarida com as companheiras Lurdinha e dona Palmira.
4) Palmira, no quarto do Lar que divide com mais cinco mulheres.

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